NO PAQUISTÃO, MULHERES NÃO PODEM SENTIR AMOR.
15:07Brasília, Brasil e o mundo sem retoques!
Como as mulheres paquistanesas são punidas por se apaixonarem
'Crimes de honra' ainda são comuns no país; crescimento de
fundamentalismo religioso dificulta combate a violência contra mulheres.
Muitas mulheres presas
no Paquistão são acusadas de adultério e aguardam julgamento por anos (Foto: BBC)
Muitas mulheres presas no Paquistão são acusadas de adultério
e aguardam julgamento por anos (Foto: BBC)
Em um país que luta para preservar suas tradições tribais, as
mulheres paquistanesas enfrentam a brutalidade – e até a morte – caso se
apaixonem pela pessoa errada.
Arifa, de 25 anos, enfrentou sua família e fugiu com o homem
que amava, com quem se casou em segredo.
No dia seguinte, em uma rua movimentada de Karachi, a cidade
mais populosa do Paquistão, membros de sua família cercaram os recém-casados e
os ameaçaram com armas.
Eles levaram Arifa e passaram-se cinco dias até que seu
marido, Abdul Malik, tivesse notícias dela.
"Recebi uma mensagem dizendo que ela havia sido morta.
Foi o dia mais difícil da minha vida", relembra, tentando evitar as
lágrimas.
"Depois de muito sofrimento, consegui provar que minha
mulher está viva e foi escondida em algum lugar."
Com receio de ser assassinado, Malik vive escondido há três
meses.
"No Paquistão, o amor é um pecado grave. Séculos se
passaram, o mundo fez tanto progresso – homens chegaram até os céus. Mas nossos
homens ainda seguem tradições e costumes da Idade das trevas", diz.
Essas tradições e costumes – com foco em negar liberdade às
mulheres – têm cada vez mais aceitação no Paquistão e são ancoradas por
estudiosos religiosos linha dura.
'Crimes de honra'
Este é um mundo em que, na prática, a mulher tem poucos
direitos – ela é propriedade da família até o momento em que se casa.
Seus "donos", então, passam a ser os familiares de
seu marido, e ela pode morrer se for considerado que desonrou a família.
Só em 2014, mais de mil mulheres foram mortas nos chamados
"crimes de honra" – este é a apenas o número de casos dos quais as
autoridades têm conhecimento.
Os chamados 'crimes de honra', muitas vezes cometidos por
familiares ou cônjuges contra mulheres, são comuns no país (Foto: Getty Images)
Os chamados 'crimes de honra', muitas vezes cometidos por
familiares ou cônjuges contra mulheres, são comuns no país (Foto: Getty Images)
Em maio, o caso da jovem Farzana Parveen chocou o mundo. Ela
estava grávida quando foi apedrejada até a morte pela própria família, por ter
se casado com um homem por quem se apaixonou, ao invés de casar-se com o homem
que os familiares escolheram para ela.
O detalhe mais chocante é que o caso aconteceu diante do
supremo tribunal de Lahore, de policiais e de transeuntes.
Em novembro, por causa da atenção que o caso recebeu da mídia
internacional, o pai, o irmão, o primo e o ex-noivo de Parveen foram condenados
à pena de morte por assassinato. Outro de seus irmãos foi condenado a 10 anos
de prisão.
Mas na maior parte das vezes, os perpetradores desses atos
brutais contra mulheres nunca são acusados, já que são protegidos pelas leis
tribais.
Alguns religiosos linha dura acreditam que só através da
morte do membro da família que a ofendeu – geralmente uma mulher – a honra pode
ser restituída ao resto dos familiares e à tribo.
O mais surpreendente é que poucas pessoas no Paquistão de
hoje estão dispostas a desafiar essas tradições e costumes tribais.Na verdade,
de acordo com uma pesquisa recente do Instituto Pew, a maioria dos
paquistaneses apóia a implementação total da sharia – o sistema legal do Islã.
Apedrejamento e chicotadas
Nas ruas de Karachi, encontro uma madrassa (espécie de
seminário) onde milhares de garotos recebem ensinamentos religiosos. Quero
perguntar ao clérigo local o que ele pensa sobre adultério, razão pela qual as
mulheres também são mortas em "crimes de honra".
"A punição deve ser aquela prescrita na sharia, que é de
apedrejamento e chicotadas", diz o mulá. Seus alunos o apóiam.
Em 1970, o general Zia-ul-Haq, ditador no Paquistão, criou a
chamada ordenança Hudood – um conjunto de leis polêmicas que pretendia
islamizar o país. Entre outras coisas, as leis de fato tornaram o adultério um
crime passível de apedrejamento e chicotadas.
Religiosos linha dura defendem punição de apedrejamento e
chicotadas para adúlteros; ideias tem aceitação até entre jovens (Foto: BBC)

Religiosos linha dura defendem punição de apedrejamento e
chicotadas para adúlteros; ideias tem aceitação até entre jovens
Em 2006, o então presidente Pervez Musharraf tentou relaxar
algumas dessas leis para proteger as mulheres, mas suas mudanças tiveram pouca
aplicação prática. Adultério ainda é crime no país.
Uma prisão central para mulheres em Karachi é onde muitas das
acusadas de adultério vão parar.
É o caso de Sadia, de 24 anos. Ela chegou à prisão 14 meses
atrás, depois que seu marido há nove anos a acusou de dormir com outro homem.
Ela aguarda julgamento.
"Meu marido se divorciou de mim, me bateu e me expulsou
de casa. Depois ele foi à polícia e disse que eu fugi com outro homem. Na
verdade, ele e sua família me expulsaram", diz.
Sadia afirma que não tem acesso a um advogado e não sabe
quando conseguirá sair da prisão. No momento da minha visita, há 80 mulheres no
local – muitas não sabem por que estão lá e acabam ficando presas por anos, sem
julgamento.
Algumas das mulheres com mais sorte vão para algum dos
abrigos espalhados pelo país.
Um desses locais, o abrigo Edhi para mulheres, é um complexo
fortificado em um dos bairros mais perigosos do subúrbio de Karachi, reduto de
simpatizantes do Talebã.
A maioria das mulheres está aqui depois de fugir de
relacionamentos abusivos ou de serem expulsas de casa por familiares.
Elas vivem pacificamente no abrigo, compartilhando tarefas,
ajudando umas as outras a cozinhar, limpar o local e cuidar das crianças.
Ninguém faz perguntas sobre o porquê de estarem ali.
Há uma regra à qual todos obedecem: ninguém pode entrar no
local sem que as mulheres permitam, incluindo autoridades.
Em abrigo, mulheres cuidam dos filhos umas das outras e
prometem não entregar-se à polícia, caso sejam acusadas de adultério.
Em abrigo, mulheres cuidam dos filhos umas das outras e
prometem não entregar-se à polícia, caso sejam acusadas de adultério.
"Se uma mulher está tendo um caso fora daqui, não nos
importamos, não perguntamos. Ela pode ficar aqui o tempo que quiser. Se a
família quiser levá-la de volta e ela tiver vontade de ir, está livre para
ir", diz Samina, que trabalha como voluntária no abrigo.
Samina diz, no entanto, que se a polícia for à procura de
alguma das mulheres por acusações de adultério, as funcionárias do abrigo não a
entregarão.
'Meus filhos gritavam'
Ayesha diz já ter deixado sua casa cinco vezes, levando seus
dois filhos pequenos, para encontrar segurança no abrigo.
Todas as vezes, seu marido volta para levá-la, mas os abusos
e a tortura aos quais ela é submetida ao voltar a fazem fugir de novo.
"Meu marido me trancava no quarto e me batia, além de
qualquer limite, me forçando a dizer que estava tendo um caso", conta.
"Meus filhos gritavam: 'Por favor, alguém ajude nossa
mãe'. Mas ninguém ouvia, ninguém aparecia."
Ayesha diz que agora não vai mais voltar para casa. O futuro
ainda é incerto, mas ela diz ter sorte de estar viva.
Apesar de um aumento da classe média e de tentativas de
modernizar as leis, o combate à misoginia (ódio às mulheres) institucionalizada
está cada vez mais difícil no Paquistão.
Yalda Hakim
Da BBC News no Paquistão
0 comentários