É ÉTICO USAR A SALA DE AULA PARA “FAZER A CABEÇA” DOS NOSSOS ALUNOS?
13:39Brasília, Brasil e o mundo sem retoques!
É ÉTICO USAR A SALA DE AULA PARA
“FAZER A CABEÇA” DOS NOSSOS ALUNOS?
A depender dos livros
didáticos nacionais, os jovens terão uma visão rudimentar, de um mundo dividido
entre capitalistas malvados versus heróis da resistência
As aulas voltaram, por essas
semanas, e decidi tirar a limpo uma velha questão: há ou não doutrinação
ideológica em nossos livros didáticos? Pra responder à pergunta, fui direto na
fonte: analisei alguns dos livros de história e sociologia mais adotados no
país. Pesquisei nas editoras, encontrei uma livraria que dispunha de todos os
exemplares e pus mãos à obra. Já li muita coisa na vida, mas não foram fáceis
as horas que passei tentando entender o que se dizia em todos aqueles livros.
No fim, acho que entendi.
O resultado é o seguinte: dos dez
livros que analisei, 100% tem um claro viés ideológico. Não encontrei,
infelizmente, nenhum livro “pluralista” ou particularmente cuidadoso ao tratar
de temas de natureza política ou econômica. Talvez livros assim existam, e
gostaria muito de conhecê-los. Falo apenas dos que me chegaram às mãos. Tudo
livro “manco”. E sempre para o mesmo lado.
Com um adendo: vale o mesmo para
escolas públicas e privadas. Imagino não serem poucos os sujeitos que jantam à
noite, com os amigos, e reclamam do viés “anticapitalista” da sociedade
brasileira. Sem desconfiar que anticapitalista mesmo é o discurso que seu filho
adolescente vai engolir na manhã seguinte, sem chance de reação, no colégio.
O viés politico surge no recorte
dos fatos, na seleção das imagens, nas indicações de leitura, na recomendação
de filmes e links culturais. A coisa toda opera à moda Star Wars: o
lado negro da força é a “globalização neoliberal” e coisas afins; o lado bom é
a “resistência” do Fórum Social Mundial, de Porto Alegre, e dos “movimentos
sociais”, MST à frente. Tudo parece rudimentar demais para ser verdade. Mas
está lá, nos livros em que nossos adolescentes estudarão.
No Brasil contemporâneo, chega a
ser engraçado. FHC é Darth Wader; Lula é Luke Skywalker. Pra ser sincero, a
saga de George Lucas me parece bem mais sofisticada do que o roteiro seguido
pelos nossos livros didáticos. Em particular, quando tratam de nossa história
recente.
No livro Estudos de
História, da Editora FTD, por exemplo, nossos alunos adolescentes
aprenderão o seguinte sobre o governo de Fernando Henrique: era neoliberal
(apesar de “tentar negar”) e seguiu a cartilha de Collor de Melo; os
“resultados dessas políticas foram desastrosos”. Na sua época, havia “denúncias
de escândalos, subornos, favorecimentos e corrupção” por todos os lados, mas
“pouca coisa se investigou”.
Nossos alunos saberão que “as
privatizações produziram desemprego”, e que o país assistia, naqueles tempos,
ao aumento da violência urbana e da concentração de renda e à “diminuição dos
investimentos”. E que, de quebra, o MST pressionava pela reforma agrária, “sem
sucesso”.
Na página seguinte, vem a luz.
Ilustrado com o decalco vermelho da campanha “Lula Rede Brasil Popular”, o
texto ensina que, em 2002, “pela primeira vez” na história brasileira, alguém
que “não era da elite” é eleito presidente. E que, graças à “política social do
governo Lula”, 20 milhões de pessoas saíram da miséria. Isso tudo faz a
economia crescer e, como resultado: “telefones celulares, eletrodomésticos
sofisticados e computadores passaram a fazer parte do cotidiano de milhões de
pessoas, que antes estavam à margem desse perfil de consumo”.
Lendo isto, me perguntei se João
Santana, o marqueteiro do PT, por ora preso em Curitiba, escreveria coisa
melhor, caso decidisse publicar um livro didático. E fui em frente.
Na leitura seguinte, do livro História
Geral e do Brasil, da Editora Spicione, o quadro era o mesmo. O PSDB é um
partido “supostamente ético e ideológico” e os anos de Fernando Henrique são o
cão da peste. Foram tempos de desemprego crescente, de “compromissos com as
finanças internacionais”, em que “o crime organizado expandiu-se em torno do
tráfico de drogas, convertendo-se em verdadeiro poder paralelo nas favelas”. E
mesmo “dentro das prisões”, transformadas em “centros de gerenciamento do
tráfico e do crime organizado”, acrescentam os autores.
Com o Governo Lula, tudo muda,
ainda que com alguns senões. Numa curiosa aula de economia, os autores tentam
explicar por que a “expansão econômica” foi “limitada”, naqueles anos: a adoção
de uma “politica amigável aos interesses estrangeiros, simbolizada pela
liberdade ao capital especulativo”; pela “manutenção, até 2005, dos acordos com
o FMI” e dos “pagamentos da dívida externa”.
O livro termina apresentando a
tensão entre o Brasil “pessimista”, dos anos FH, com os anos “otimistas” do lulismo,
e conclui com um prognóstico: “as boas notícias nos últimos anos indicavam que
talvez os anos do pessimismo a toda prova já tenham passado e, nesse caso, pode
ser o momento do não negativo como um novo paradigma para o Brasil”.
O livro História conecte,
da Editora Saraiva, segue o mesmo roteiro. O governo FHC é “neoliberal”.
Privatizou “a maioria das empresas estatais” e os U$ 30 bilhões arrecadados
“não foram investidos em saúde e educação, mas em lucros aos investidores e
especuladores, com altas taxas de juros”. A frase mais curiosa vem no final: em
seu segundo mandato, FH não fez “nenhuma reforma”, nem tomou “nenhuma medida
importante”. Imaginei o presidente deitado em uma rede, no quarto andar do
Palácio do Planalto, enquanto o país aprovava a Lei de Responsabilidade Fiscal
(2000), o fator previdenciário (1999) ou o bolsa escola (2001).
FHC manteve o país “alinhado” e
“basicamente dependente dos EUA”, enquanto Lula aumentou as relações
diplomáticas e comerciais com a “União Europeia e vários países africanos,
asiáticos e sul-americanos”. FH havia beneficiado os especuladores; Lula
beneficiou os “trabalhadores” e as “camadas mais pobres”. De quebra, “apoiou as
indústrias de exportação” e “incentivou muitas empresas a se
internacionalizarem”. Lendo isso, tive ganas de sair pelas ruas, com uma
bandeira vermelha. Mas me contive.
O padrão “João Santana” se repete
no livro História para o ensino médio, da Atual Editora. É curioso
o tratamento dado ao caso do “mensalão”. Alguma menção ao julgamento realizado
pelo Supremo Tribunal Federal? Não. Nossos alunos saberão apenas que houve
“denúncias de corrupção” contra o governo Lula, incluindo-se um caso conhecido
como mensalão, “amplamente explorado pela imprensa liberal de oposição ao
petismo”.
No livro da Atual Editora, é
interessante perceber o tratamento dado à América Latina. A tensão política
surge, como de regra, a partir da clivagem “contra ou a favor do
neoliberalismo”. Nossos alunos serão instruídos sobre a resistência oferecida
“à globalização capitalista neoliberal” pelo Fórum Social Mundial, de Porto
Alegre, e poderão saborear, sob o rótulo de “fonte histórica”, um trecho do
“manifesto de Porto Alegre”.
Sobre o Mercosul, nossos alunos
aprenderão que o Paraguai foi excluído do bloco em 2012, em função do “golpe de
Estado” que tirou do poder o presidente Fernando Lugo. Saberão que, com a
eleição de Hugo Chávez, a Venezuela torna-se o “centro de contestação à
política de globalização capitalista liderada pelos Estados Unidos”. Que “a
classe média e as elites conservadoras” não aceitaram as transformações
produzidas pelo chavismo, mas que, mesmo assim, o comandante “conseguiu se
consolidar”. Sobre a situação econômica da Venezuela, alguma informação? Alguma
opinião crítica para dar uma equilibrada no jogo e permitir que os alunos
formem uma opinião? Nada, por óbvio.
Interessante é o tratamento dado às
ditaduras na América Latina. Para os casos da Argentina, Uruguai e Chile, um
capítulo (merecido) mostrando, no detalhe, os horrores do autoritarismo e seus
heróis: extratos de As veias abertas da América Latina, de Eduardo
Galeano; as mães da Praça de Maio, na Argentina; o músico Victor Jara,
executado pelo regime de Pinochet, e uma sequência de indicações de filmes
sobre a “resistência” e a luta pelos direitos humanos, no continente. Tudo
perfeito.
Quando, porém, se trata de Cuba, a
algumas páginas de distância, a conversa é inteiramente diferente. A única
ditadura que aparece é a de Fulgêncio Batista. Em vez de filmes como Antes
do anoitecer, sobre a repressão cubana ao escritor e homossexual Reynaldo
Arenas, nossos estudantes são orientados a assistir Diários de
motocicleta, Che, e Personal Che.
Não deixa de ser engraçado. Quando
fala da Argentina, o livro sugere uma “Visita ao patrimônio” no “Parque da Memória”,
uma (justa) homenagem às vitimas do terrorismo de Estado, em Buenos Aires.
Quando trata de Cuba, a “visita ao patrimônio” sugerida pelos nossos isentos
autores é ao “Museu da Revolução”, com especial recomendação para observar o
“pequeno iate” em que Fidel e Che aportaram para a gloriosa revolução. E,
imperdível: uma salinha, o rincón de los cretinos, feita para
ridicularizar tipos como Batista, Reagan e Bush.
As restrições do castrismo à
“liberdade de pensamento” surgem como “contradições” da revolução. Alguma
palavra sobre os balseros cubanos? São milhares, neste mais de meio século.
Alguma fotografia, sugestão de filme ou “link cultural”? Alguma coisa sobre o
paredón cubano? Há fotos muito boas sobre estes temas, mas nenhuma aparece em
livro nenhum.
Alguma coisa sobre Oswaldo Payá,
Orlando Zapata, Yoani Sánchez e a luta pelos direitos humanos na Ilha? Alguma
coisa sobre as “Damas de Blanco”? Zero. Nossos estudantes não saberão nada
sobre isto. Não terão essa informação para que possam produzir seu próprio
juízo. É precisamente isso que se chama ideologização.
A doutrinação torna-se ainda mais
aguda quando passamos dos livros de história para os manuais de sociologia. Em
plena era das sociedades de rede, da revolução maker, da explosão
dos coworkings e da economia colaborativa, nossos jovens
aprendem uma rudimentar visão binária de mundo, feita de capitalistas malvados
x heróis da “resistência”. Em vez de encarar de frente o século XXI e suas
incríveis perspectivas, são conduzidos de volta a Manchester do século XIX.
Não acho que superar esse problema
seja uma tarefa trivial. A leitura desses livros me fez perceber que há um
“mercado” de produtores em série de livros didáticos muito bem estabelecido no
país, agindo sob a inércia de nossas editoras e a passividade de pais,
professores, diretores de escolas e autoridades de educação. Pessoas
comprometidas com uma visão política de mundo e dispostas a subordinar o ensino
das ciências humanas a essa visão. Sob o argumento malandro de que “tudo é
ideologia”, elas prejudicam o desenvolvimento do espírito crítico de nossos
alunos. E com isso fazem muito mal à educação brasileira.
Fernando L. Schüler é Doutor em Filosofia (UFRGS) e Professor do Insper.
É titular da Cátedra Insper Palavra Aberta e curador do Projeto Fronteiras do
Pensamento.”
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