MINHA CASA, MINHA VIDA: UMA FARSA QUE PIOROU CIDADES E ALIMENTOU ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA, DIZ EX-SECRETÁRIA DO GOVERNO LULA
23:26Brasília, Brasil e o mundo sem retoques!Maior programa habitacional da história do Brasil e uma das vitrines dos governos do PT, o Minha Casa, Minha Vida (MCMV) piorou as cidades, agravou as dificuldades de acesso a moradia entre os mais pobres e criou bairros especialmente vulneráveis ao crime organizado.
A avaliação é de Ermínia Maricato, uma das mais experientes
urbanistas do país e secretária executiva do Ministério das Cidades nos
primeiros anos do governo Lula, antes da criação do programa, em 2009.
"Tivemos um movimento imenso de obras, mas quem o comandou
e definiu onde se localizariam não foi o governo federal, e sim interesses de
proprietários imobiliários, incorporadores e empreiteiras", diz Maricato,
que estuda o MCMV desde sua implantação e é professora aposentada da Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).
Em entrevista à BBC Brasil em sua casa na Vila Madalena, em
São Paulo, ela afirma que conjuntos residenciais do programa erguidos longe dos
centros urbanos levarão várias décadas para se integrar às cidades. "Esse
investimento gigantesco, aliado a uma especulação de terras ciclópica, tornou
as cidades ainda mais inviáveis no Brasil."
Líder da
Reforma Urbana
Autora de nove livros sobre habitação e urbanismo, Maricato
coordenou a proposta de criação do Ministério das Cidades, executada por Lula
após sua ascensão à Presidência, em 2003.
Ela havia se projetado nas décadas anteriores como uma das
líderes do movimento pela Reforma Urbana, que pretendia tornar as cidades
brasileiras menos desiguais e se organizava nas Comunidades Eclesiais de Base
(grupos ligados à Igreja Católica nas periferias e zonas rurais).
Maricato discursou em nome do movimento na Assembleia
Constituinte, em 1988, e articulou a inclusão do conceito de função social da
propriedade na Constituição. Um dos principais trunfos de movimentos sem-teto e
sem-terra, o conceito define que as propriedades devem atender interesses
coletivos, e não apenas individuais.
Câmaras Municipais incluíram
fazendas no perímetro urbano para atrair obras do MCMV, diz urbanista (Foto:
Ermínia Maricato)
Entre 1989 e 1992, ela atuou como
secretária da Habitação e Desenvolvimento Urbano no governo da então petista
Luiza Erundina, em São Paulo. A urbanista diz que um de seus objetivos era
tornar favelas e periferias menos insalubres, reduzindo a incidência de
epidemias e doenças pulmonares por falta de ventilação. Outra prioridade era
construir moradias em parceria com movimentos sociais.
Nesse modelo, o governo providencia
terrenos e contrata arquitetos e engenheiros para projetar as casas. As
unidades são construídas com recursos do governo pelos próprios moradores ou
com a ajuda deles. Ela afirma que o programa foi um grande sucesso. O Minha
Casa, Minha Vida prevê a possibilidade de construir moradias dessa maneira, mas
os gastos com esse modelo representam 2% dos investimentos totais do programa,
segundo Maricato.
Ciclo virtuoso
Maricato diz que, nos anos 1990,
iniciativas bem sucedidas em habitação se espalhavam por várias cidades, entre
as quais Recife, Salvador, Belém, Goiânia e Porto Alegre.
Os avanços ocorriam apesar dos
tempos de vacas magras. "Tínhamos um ciclo virtuoso produzindo políticas
inovadoras. Esse ciclo se rompe exatamente no momento em que o Ministério das
Cidades é criado."
Não era isso o que Maricato
esperava ao batalhar pela criação do órgão, projetado para integrar as
políticas de habitação às de transporte, saneamento e regulação do solo urbano.
Para chefiar o órgão recém-criado,
Lula escolheu um quadro histórico do PT: o ex-governador gaúcho Olívio Dutra,
que nomeou Maricato como secretária executiva. Ela conta que seu objetivo era
federalizar as experiências positivas das prefeituras. Os trabalhos, porém,
foram interrompidos com o escândalo do mensalão, quando o PT foi acusado de
comprar apoio político no Congresso.
Entre outras medidas para acalmar
sua base, Lula entregou o Ministério das Cidades ao Partido Progressista (PP).
Olívio e Maricato deixaram o órgão.
O governo estava prestes a dar
outro rumo às políticas urbanísticas e habitacionais - e justamente quando os
cofres do governo estavam mais cheios, graças à arrecadação turbinada pela
exportação de matérias-primas e pelo consumo das famílias.
"Enquanto não tínhamos
recursos e estávamos sob ajuste fiscal, com dívida pesada, tivemos controle
sobre os gastos. Quando apareceram os recursos, os capitais tomaram
conta."
Condomínio do MCMV em Campina
Grande (PB) cercado por propriedades rurais (Foto: Ermínia Maricato)
'Como uma luva'
Em 2008, para tentar atenuar os
efeitos da crise financeira global, o governo Lula buscou estimular a
construção civil. Muitas empresas do setor estavam descapitalizadas.
"O Minha Casa, Minha Vida veio
como uma luva: as empreiteiras e os incorporadores imobiliários privados se
reuniram em torno dele", diz Maricato.
Para tirar o programa do papel, o
governo transferiu recursos do Ministério das Cidades para a Caixa. Nas obras
da faixa 1, para famílias com renda de até R$ 1.600 por mês, construtoras
recebem recursos do banco para erguer as residências. O governo arca com até
90% do custo dos imóveis, e o valor restante é quitado pelas próprias famílias.
Nas faixas 2 e 3, que cobrem
famílias com renda de até R$ 6.500, a Caixa oferece empréstimos subsidiados às pessoas
interessadas em comprar as residências.
Para as construtoras participantes,
uma das maneiras de ampliar os lucros é economizar na compra dos terrenos - por
isso muitas buscaram áreas mais baratas nos arredores das cidades.
Segundo o governo federal, o MCMV
contratou a construção de cerca de 5 milhões de residências, o que o torna o
maior programa habitacional da história do país. A Caixa diz que 14,7 milhões
de pessoas - o equivalente a 7% da população brasileira - já receberam moradias
pelo programa.
Entre as unidades contratadas,
cerca de 39% se destinavam à faixa 1, 49%, à faixa 2, e 12%, à faixa 3.
Deficit habitacional
Ao lançar o programa, o governo
Lula tinha como meta reduzir o deficit habitacional - que, em 2009, era
calculado em 5,7 milhões de domicílios pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea).
Maricato afirma, porém, que nem sempre construir
moradias é a melhor forma de reduzir o deficit, pois o índice contabiliza
moradias precárias, muitas das quais poderiam se adequar aos padrões com
reformas.
Conjunto do MCMV em São José dos
Campos (SP); mais de 5 milhões de moradias foram contratadas pelo programa
(foto: Ermínia Maricato)
Outro problema, segundo Maricato, é
a contabilização de moradias habitadas por mais de uma família. Em muitos
casos, diz ela, as famílias moram juntas por opção.
"Entendo que tanto os
movimentos (de luta por moradias) quanto os empresários gostem de trabalhar com
o conceito de deficit, mas moradia é uma mercadoria especial, não dá para
pensá-la como fábrica de automóvel."
Segundo ela, a mesma doutrina já
havia dominado as políticas habitacionais durante a ditadura militar
(1964-1985), quando o Banco Nacional de Habitação (BNH) financiou a construção
de cerca de 4 milhões de residências, grande parte, em áreas periféricas.
Maricato diz que o Minha Casa foi
concebido não no Ministério das Cidades, mas sim na Casa Civil, à época
chefiada pela então ministra Dilma Rousseff. "Mas o DNA do programa vem da
ditadura e das empreiteiras, exatamente como (a hidrelétrica de) Belo
Monte".
A BBC Brasil enviou as críticas de
Maricato sobre o programa ao PT, que sugeriu encaminhá-las à assessoria de
Dilma. A ex-presidente não quis se pronunciar.
Urbanização de favelas
Maricato afirma que, ao lançar o
primeiro Programa de Aceleração ao Crescimento (PAC), em 2007, o governo ainda
destinou investimentos significativos para a urbanização de favelas, mas que
esses recursos foram minguando à medida que o governo passou a priorizar a
construção de casas novas.
Para Maricato, construir
residências era importante, mas descuidar das favelas e periferias foi um
grande erro. "Tem que fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Construir sem
regular as áreas já ocupadas gera uma demanda fora da cidade consolidada."
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captionLixo em terreno vizinho a condomínio do MCMV em Uberlândia (MG); para
Maricato, localização dos conjuntos dificulta chegada de serviços públicos
(foto: Ermínia Maricato)
Outro problema sério, segundo ela,
foi a construção de residências em áreas distantes dos centros urbanos.
"As cidades explodiram horizontalmente, algo que todo urbanista condena,
porque você tem de estender a rede de água, esgoto, de transporte. Quem paga
por isso? Todos. E os que ganham são muito poucos: as empreiteiras, as
incorporadoras imobiliárias e os donos de terrenos."
Ela conta que a Caixa, executora do
programa, criou uma regra para impedir a realização de obras fora das cidades.
Mas as Câmaras Municipais, responsáveis por definir as zonas rurais e urbanas
dos municípios, passaram a estender os limites dos perímetros urbanos para
atrair construções.
"As Câmaras incluíram fazendas
no perímetro urbano. O que acontece no fim de semana nos conjuntos
habitacionais criados nessas áreas? O ônibus não vai, você tem um exílio na
periferia."
A Caixa não quis se pronunciar
sobre as críticas de Maricato.
A urbanista afirma ainda que, por
estarem longe das cidades e dos empregos, os novos bairros também são mais
difíceis de policiar e vulneráveis ao crime organizado.
"A cidade segura é compacta,
com mix de uso: tem moradia e trabalho, está viva de dia e de noite."
Ela diz ter visitado conjuntos
dominados por criminosos em Campina Grande (PB) e afirma que 40 mil pessoas que
viviam no centro do Rio de Janeiro se mudaram para condomínios do MCMV
controlados por milícias na Baixada Fluminense. Em 2015, 39 desses conjuntos
foram alvo de uma operação da polícia fluminense contra milícias.
Valorização de terrenos
Maricato diz que um dos pontos
positivos do MCMV foi criar um mercado para as classes média-média e
média-baixa. Até então, segundo ela, esses grupos tinham de construir suas
próprias casas.
A professora diz que investimentos
do programa nas faixas 2 e 3 verticalizaram bairros em Osasco, Guarulhos, São
Bernardo do Campo e Santo André, nos arredores de São Paulo.
"Foi positivo para essas
áreas. Mas tem um problema: o pessoal mais pobre foi empurrado para a periferia
da periferia, inclusive áreas de proteção de mananciais. A fronteira de
ocupação predatória foi ampliada, porque o preço da terra subiu na
periferia."
Image captionPara Maricato,
governo deveria investir em urbanização das favelas e construção de residências
simultaneamente
Outro aspecto positivo foi o alívio
financeiro e melhoria das condições de habitação para as famílias mais pobres
beneficiadas pelo programa.
Nos conjuntos que visitou por todo
o Brasil, Maricato diz que a maioria das famílias está satisfeita com as casas.
"Antes, muitas delas viviam de aluguel. Hoje pagam parcelas ínfimas e
podem até alugar os imóveis."
Por outro lado, afirma que os
moradores passaram a perder mais tempo e dinheiro se deslocando no cotidiano.
Mesmo em cidades médias como Uberlândia (MG), Maricato diz que se tornaram
comuns casos de moradores do MCMV que levam até uma hora e meia para chegar ao
trabalho.
Em cidades grandes, ela diz que
muitas famílias vivem o seguinte dilema: ou gastam mais para morar no centro e
economizar com o transporte, ou vão para a periferia, onde economizam com a
moradia, mas gastam mais com o deslocamento.
Não é uma equação fácil, afirma
Maricato. Em São Paulo, o aluguel de um cortiço na região central pode custar
R$ 800 ou R$ 900, quase um salário mínimo. Na periferia, há quem gaste R$ 400
ou mais com transporte público todo mês.
Segundo ela, as condições levam
muitas famílias a ocupar prédios vazios no centro da cidade. "Há
movimentos sociais incríveis, que prestam serviços e ocupam imóveis ociosos que
não estão seguindo a lei. Mas também surgem aproveitadores, porque há uma
multidão precisando morar e que não consegue pagar nem transporte nem
aluguel."
Após deixar o governo Lula,
Maricato diz que continuou próxima do PT. Só se afastou anos depois quando
percebeu "que nem o PT nem os movimentos sociais estavam em linha de
mudança".
"Ao invés de transformar o
Estado, eles foram transformados pelo Estado."
Mesmo assim, a professora avalia
que o PT está sendo perseguido pela Justiça - e que Lula foi preso
injustamente.
"Sou crítica à política que o
PT fez, mas não deixo de reconhecer que houve distribuição de renda e
liberdade", afirma.
BBC BRASIL
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